terça-feira, 27 de março de 2018

Artigo - "Uma ideia genial", por Fernando Jorge


Em nosso país não só os políticos soltam frases absurdas, erradas. Revistas e jornais também as expelem. Já elogiei diversas vezes o matutino “O Globo”, do Rio de Janeiro, pois o considero um dos jornais mais bem feitos do Brasil. Entretanto, na edição do dia 26 de março de 2004, uma sexta-feira (dia do azar), o bonito “O Globo” exibiu esta feia manchete no alto da página 12 do seu primeiro caderno:
Governo indenizará mortos em manifestações.

Amigo leitor, explique-me como o Governo poderá indenizar os defuntos. Vai arrancá-los dos seus túmulos? Pegará os cadáveres, se estiverem inteiriços, ou os esqueletos desconjuntados, a fim de emendar os ossos?

Depois de realizar esse útil trabalho preliminar, imagino que sua excelência, o Governo, dirá aos moradores das cidades do Sumiço Eterno:
-Prezados defuntos, fiquem tranquilos. Vocês morreram em confrontos com a polícia, durante manifestações políticas ocorridas na época da ditadura, porém agora serão indenizados. Encaminhem os pedidos ao Ministério da Justiça e anexem os laudos do Instituto Médico-Legal (IML), no prazo de120 dias. Se provarem que foram selvagemente assassi¬nados, não tenham dúvida, caros defuntos, vocês vão receber quantias que variam entre 100 mil e 150 mil reais. Graças a essas quantias, poderão comprar novos caixões e túmulos mais confortáveis, moderníssimos, com ar condicionado, geladeira e televisão.

Emocionei-me, após ter lido a manchete de “O Globo”.  Lágrimas escorreram pelo meu romântico e pálido rosto. Que lindo! Não resisto, vou reproduzir novamente a manchete:
Governo indenizará mortos em manifestações. Oh, como me orgulho de ser brasileiro! Nem a Alemanha, nem a Itália, nem a Inglaterra, nem os Estados Unidos, nenhum dos países mais ricos do mundo teve esta ideia genial: indenizar os defuntos, Só o Brasil. Levantei-me da minha cadeira, pus a mão direita em cima do cora¬ção e soluçando, sem conter o meu desvairado patriotismo, comecei a cantar o hino nacional...

Apenas uma observação: como o Governo indenizará os defuntos que foram incinerados? Indenizará o pó, as cinzas? Dois dias após o aparecimento da emocionante manchete de “O Globo”, eu abri a edição do dia 28 de março da “Folha de S. Paulo”, num domingo, e li estas linhas na página C-4 da seção “Cotidiano”:
“No dia 18 de fevereiro, por volta das 11 h, um táxi Ômega a serviço do hotel Intercontinental vai até a galeria de arte Juliani e retira três obras de arte: um guache de Maurice de Vlaminck, um Diego Rivera e um óleo sobre tela de Albert Marquet.”
Sensacional! A “Folha de S. Paulo”, por causa desse informe, devia ter publicado a seguinte manchete:
Táxi ladrão rouba obras de arte. Lançado em muitos idiomas, “The Guinnes Book of Records” precisa registrar este fato espantoso: um táxi foi até a uma galeria de arte e surrupiou três pinturas! Como é que esse assaltante de quatro ro¬das conseguiu apoderar-se dos quadros? Ele tem olhos, braços, mãos, pernas? Deve ser, acredito, um táxi bem ágil, esperto, uma raposa de metal, vidro e borracha.

Acho que ele entrou sorrateiramente na galeria, silenciando o escapamento e o motor, olhou o lugar de maneira cuidadosa, e zás, agarrou as três pinturas com as suas mãos agilíssimas, metendo-as no seu porta-malas. Depois, sempre rápido, após pular uma janela, escapuliu como um passarinho liberto da gaiola. Ah, os automóveis de hoje! Perderam a inocência, a honestidade! Quem diria, já temos automóveis larápios! Proponho a criação de delegacias só para apurar os roubos efetuados por esses veículos e cadeias especiais para eles, onde fiquem imobilizados, sem nenhum litro de gasolina.

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Escritor e jornalista, Fernando Jorge é autor de Drummond e o elefante Geraldão, lançado pela Editora Novo Século

Leia mais em: www.fernandojorge.com

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