quarta-feira, 7 de março de 2018

Artigo - "Reflexões sobre o consumo e a produção de música", por Ronaldo Rodrigues*

O músico e compositor Ronaldo Rodrigues (Foto:Arquivo Pessoal)
Inspirado por dois artigos do crítico André Barcinski e baseado em recentes experiências particulares como músico e produtor de meus próprios trabalhos, decidi partilhar algumas confabulações a respeito do mercado de música.

O assunto sempre desperta reações intensas, muita futurologia e desabafos. Os referidos artigos citam a constatada derrocada da indústria fonográfica, e de forma surpreendente e fundamentada, jogam pá de cal na falsa ideia de que a internet traria grandes benefícios para músicos e bandas (independentes e do mainstream). 

O alicerce da argumentação reside em dados sobre o mercado fonográfico nos EUA: a fatia de 1% dos músicos mais ricos em 1982 concentrava menos renda do que os 1% mais ricos em 2015, apenas 6,26% de todos os discos lançados em 2010 venderam mais do que 1.000 (mil!) cópias, 29 artistas diferentes chegaram ao topo das paradas em 1986 e apenas 6 artistas diferentes chegaram ao mesmo topo entre 2008 e 2012. Ou seja, a música diminuiu de tamanho e se concentrou.

E isso é mais alarmante ao constatarmos a quantidade enorme e quase incontável de discos lançados por ano no mundo. Uma prova simples disso é a própria seção de lista de melhores discos do ano realizados aqui pela Consultoria do Rock – os colegas do site não fizeram suas escolhas a partir de terem ouvido mais ou menos o mesmo conjunto de discos, pelo simples fato de que cada um foi atrás de um estrato definido de estilos e estéticas que mais lhe interessam. Outros dois fatos alarmantes – a população da Terra cresce (hoje somos mais de 7 bilhões de pessoas) e grande parte dessa população tem acessos a eletroeletrônicos portáteis aptos a ouvirem música e conectados à Internet.

Ou seja, estamos diante de uma concentração sem precedentes da pirâmide musical, quando deveríamos estar contemplando uma época absolutamente plural, diversificada e sofisticada em termos de música. Há música em abundância sendo feita em todas as partes do mundo e há um mercado potencialmente consumidor gigantesco que poderia ter acesso a ela. Mas o que vemos é um mercado musical concentrado em pouquíssimos nomes de abrangência global e todo o restante absolutamente fragmentado.

Se raciocinarmos de forma estritamente mercadológica podemos imaginar o panorama. A indústria fonográfica moldou a produção de música e junto dela se montou uma estrutura similar a que é estabelecida para a venda e distribuição de qualquer produto – o produto (a música) é fabricado e busca-se o mercado para que este produto possa ser distribuído e atinja o público. Na parte da distribuição a teia é complexa – é preciso um local para a música ser apresentada (shows, rádios), uma cadeia de propaganda para fazer com que o produto seja conhecido e desperte o interesse dos consumidores (mídia, revistas especializadas, etc.) e um local para que possa ser vendido (lojas de disco). Para tudo isso funcionar é preciso também equilibrar oferta e demanda – não adianta oferecer mais produto (ou mais variedade de produtos) do que aquilo que as pessoas são capazes de consumir. Mas especialmente é preciso fazer o produto chegar até as pessoas. Podemos aplicar esse raciocínio à grande maioria de produtos do nosso cotidiano.

A indústria fonográfica, ao longo de várias décadas, fez essa roda toda girar. E ainda que demonizada pelos abusos e os interesses desenfreados, atuou como um grande filtro – investiu em talentos, fez apostas muitas vezes arriscadas e criou estrutura para que grandes obras musicais fossem bem gravadas e atingissem o público. Críticas (merecidas) podem ser feitas à vontade, mas não fosse pela atuação da indústria fonográfica, nomes como Elvis Presley, Chuck Berry, Little Richard, Bob Dylan, Beatles, Rolling Stones, The Who, Jimi Hendrix, The Doors, Led Zeppelin, Black Sabbath, Deep Purple, Yes, ELP, Genesis, Pink Floyd, Queen, Kiss, David Bowie, Iron Maiden, Judas Priest, Whitesnake, Van Halen, U2, Guns Roses, Pearl Jam, Nirvana, etc., etc., etc., não chegariam onde chegaram. E dificilmente escreveriam a história que escreveram sem a indústria fonográfica. Por um grande motivo – a indústria fonográfica fez a música chegar até as pessoas.

A internet foi capaz de desarticular toda a cadeia da indústria fonográfica em poucos anos – o mp3 deu corpo àquilo que se fazia com fitas k7, já que era possível obter música de qualidade sem pagar e com uma disponibilidade grotesca de itens; a onda de miniaturização dos dispositivos varreu os formatos físicos dos álbuns e o colecionismo; a crítica musical foi vilipendiada e colocada no mesmo nível da opinião dos fãs com as redes sociais; programações de rádios foram colocadas de lado em favor de playlists personalizadas e publicações impressas perderam valor em um universo onde cada um pode fazer o seu próprio “jornalismo”.

Além das questões postas acima a respeito da internet, a desarticulação da indústria fonográfica também tem uma vertente oriunda de “dentro para fora”. Artistas inconformados com falta de liberdade artística e presos a contratos leoninos, começaram a buscar se lançar de forma independente. O que surgiu a partir de um comportamento legítimo, obriga hoje o artista à, desamparado da estrutura de promoção e distribuição das gravadoras, a ser músico e também o próprio (e em muitos casos o único) divulgador de seu trabalho. Na teoria isto pode até funcionar e era o que se pensava nos primórdios da popularização da internet, com a chamada “teoria da cauda longa”. Mas na prática vê-se que é praticamente impossível atingir alguma escala de produção musical desta forma.

A concorrência entre os músicos aumentou dramaticamente, com a facilidade de se gravar um disco com boa qualidade. Um músico, hoje, está sempre rodeado de centenas (para não dizer milhares) de outros músicos também tentando divulgar por si só o próprio trabalho, fazendo isto praticamente da mesma forma através das redes sociais. E fazendo isto em um contexto no qual as pessoas, pelo efeito da internet e do mp3, se desacostumaram a “pagar” pela música. Em suma – há muita oferta de “produto”, nenhuma estrutura para difusão em larga escala, e poucas pessoas interessadas em comprar este produto.

Para tentar tornar mais claro o raciocínio, faço uma analogia: se a Coca Cola falisse e houvesse uma explosão de pequenos fabricantes regionais de bons refrigerantes, que dispusessem apenas da internet e do boca-a-boca para divulgar seu produto, duas coisas provavelmente ocorreriam: 1) o mercado ficaria extremamente fragmentado a ponto de que quase nenhum fabricante conseguisse auferir lucros suficientes para continuar na atividade, e 2) o melhor panorama possível para os que conseguissem sobreviver seria ter um mercado consumidor local consolidado, o que seria conseguido apenas por um grande diferencial de qualidade, um bocado de sorte ou algum fator inusitado. Não estou fazendo nenhum juízo de mérito quanto ao tamanho que a Coca Cola tem no mercado de refrigerantes, mas apenas dando grande enfoque ao quanto a estrutura de distribuição é importante para que um negócio atinja uma escala minimamente razoável.

Nos parágrafos anteriores, tratamos dos aspectos relacionados à indústria fonográfica, que detendo uma estrutura de distribuição conseguia equilibrar oferta e demanda de música, e dos relacionados aos músicos, que ao passo que eram tolhidos pela indústria para sempre produzir conteúdo vendável, dispunham da estrutura oferecida para fazer sua música chegar até os ouvintes. Cabe agora tratar da terceira parte interessada nesta trama – o consumidor de música.

Poucos textos que analisam o mercado fonográfico discorrem com profundidade sobre o comportamento do público consumidor e muitas vezes embalam suas análises em clichês. Mas, em essência, o comportamento do público pouco mudou em todas essas décadas e se fizermos novas analogias veremos que o consumidor raciocina da mesma maneira como que para outros produtos. Coloco em pauta novamente a questão da distribuição – em décadas passadas, as pessoas ligavam o rádio e eram expostas à música. Aquilo que elas ouviam e as agradavam poderiam faze-las comprar um disco. Além do mais, a variedade de música produzida não era tão grande quanto a de hoje e a programação das rádios, por mais ecléticas que fossem, investia na repetição de um conjunto limitado (seja por jabá ou pelo gosto particular do programador) de canções, o que garantia que elas fossem assimiladas pelo máximo de pessoas durante um certo período. Esse modelo permitia que uma banda ou uma canção ficasse conhecida pelas pessoas, que seus discos fossem vendidos ou seus shows vistos.

É importante salientar que neste modelo o consumidor de música tinha um papel “semi-passivo”. Ele tinha o interesse em música e tomava a decisão de ligar o rádio; o restante da roda girava por força da indústria e pela qualidade do que era oferecido. Como a estrutura de distribuição de música não existe mais, espera-se hoje que o consumidor de música assuma um comportamento bastante anti-natural, quase uma excepcionalidade. Vou dar um exemplo deste raciocínio: 

Pensemos nos supermercados – o consumidor quer/precisa de certos produtos para abastecer sua casa e toma a decisão de ir até um local onde esses produtos são oferecidos. Ele prefere ir à um local onde possa fazer tudo de forma concentrada, tendo um bom conjunto, porém racionalmente limitado, de opções de compras de cada item que deseja. Eventualmente ele é exposto à itens que não quer (ou não precisa) mas se interessa por eles, pelo preço ou por outros aspectos menos tangíveis. Eventualmente, algum produto lhe é oferecido de graça, para que ele conheça uma nova marca, e alguns produtos são postos em posição de destaque, com o objetivo de atrai-lo. Ele separa o que quer/precisa, passa no caixa e paga por aquilo que levou. Qualquer um de nós sabe o quanto é difícil alguém ter disponibilidade de tempo e interesse em procurar produtos alternativos, de outras marcas além das mais populares, de pequenos produtores, de feiras ou juntas locais, visitar propriedades rurais atrás de especiarias ou produtos frescos, dentre outros. A maioria das pessoas vão até um centro de consumo (em geral o mais perto disponível) e consomem o que é ofertado. A lógica do supermercado é de que o produto é que vai até as pessoas e esta lógica é a que permite ter escala suficiente para oferecer itens razoavelmente variados, com preço razoável e garantindo lucratividade.

Com o rádio acontecia algo parecido. O sujeito queria ouvir música e era como se passeasse por um supermercado. Alguns amostras grátis lhe eram oferecidas, mas se ele quisesse desfrutar mesmo daquela música, comprava e levava para casa. É besteira pensar que a indústria fonográfica lucrou e sobreviveu décadas a fio a partir da busca ativa dos ouvintes; que os ouvintes iam até as lojas de discos e ficavam ouvindo centenas de discos até selecionarem os itens que iriam comprar. O grosso do consumo sempre esteve fundamentado na distribuição; o ouvinte adquiria aquilo à que era exposto ou ao que era comentado na mídia, que lhe agradasse ou despertasse grande interesse. O que era oferecido pelo rádio, tendo qualidade e/ou tendo muito apelo em determinado contexto, vendia.

E parece ser assim nessa excepcionalidade que os músicos que se auto-produzem pensam ser possível progredir – aguardando a busca ativa dos ouvintes. Considero isto bastante improvável por alguns motivos: 1) a oferta de opções de entretenimento barato (ou até gratuito) é muito grande nos tempos atuais; 2) a quantidade de música produzida atualmente é enorme e dificilmente será assimilada integralmente desta forma; 3) há um paradigma de imediatismo e descartabilidade; 4) há uma competição enorme entre o “velho” e o “novo” na música. Para este último ponto, fica claro entender o quanto a competição é desfavorável, já que o “velho” teve um suporte de investimento em distribuição de larga escala e o “novo” não. O “velho” ronda o ouvido das pessoas há muito mais tempo e já ultrapassou a curva de assimilação (além das qualidades musicais que carrega para tal) o que gera as trágicas comparações do tipo “antigamente o som era melhor”. Há vários outros aspectos que podem abordados na questão do consumo de música, mas que podem ser tratados mais profundamente em outra ocasião.

E por fim – quais as perspectivas para o futuro? de forma serena, aponto dois conjuntos de possibilidades: uma construção/reconstrução de estruturas de distribuição de música até um certo porte mínimo (seja porque as pessoas percebam que isso tem importância ou por movimentos do próprio mercado) ou o fim da profissão de músico. Essa segunda possibilidade não é fatalista – a música pode continuar existindo sem que haja músicos profissionais. A música simplesmente deixaria de ser integralmente uma profissão e passaria a ser um ofício, uma atividade a ser desempenhada apenas eventualmente (e que não exclui a possibilidade e a necessidade de ser executada com profissionalismo). Essa realidade já existe para muita gente no Brasil (eu incluído) e em outros países mais desenvolvidos. (Do Portal Consultoria do Rock)

*Músico, compositor e editor do portal Consultoria do Rock 

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